Fragmento Papiráceo
Em síntese: Em
1917 a Biblioteca John Ryland, de Manchester, adquiriu no Egito um
pequeno papiro, cujo conteúdo foi identificado em 1939; é o texto de uma
oração dirigida a Maria Santíssima invocada como Theotókos (Mãe de
Deus) no século III. Quando em 431 o Concilio de Éfeso proclamou Maria
Theotókos, fez eco a uma tradição cujo primeiro termo conhecido remonta a
Orígenes (243).
Em 1917 a
Biblioteca John Ryland, de Manchester (Inglaterra), adquiriu no Egito um
pequeno fragmento de papiro de 18 x 9,4 cm, que foi catalogado como Ryl. III, 470. Esse papiro apresenta uma oração mariana de grande importância tanto por seus dizeres como por sua data.
Examinaremos, a seguir, o conteúdo do papiro e a respectiva datação.
1. O conteúdo do papiro
O texto do
fragmento papiráceo foi editado em 1938, sem que se tivessem até então
identificado os seus dizeres. Isto só foi feito no ano seguinte por F.
Mercenier: este pesquisador verificou que se tratava da oração mariana
conhecida e recitada ainda hoje com as palavras iniciais "Sob a vossa
proteção" (Sub tuum praesidium... em latim). Embora o texto não
esteja completo, mas deteriorado pelas intempéries dos séculos (coisa
normal entre os papiros), o sentido das palavras pode ser depreendido
com clareza e segurança. Eis, a seguir, uma reprodução do papiro e a
reconstrução do seu conteúdo. Entre colchetes estão coloca- das as
letras gregas subentendidas para dar significado ao texto:
O texto, devidamente reconstituído, diz o seguinte:
Sob a tua misericórdia nos refugiamos. Mãe de Deus!
Não deixes de considerar as nossas súplicas em nossas dificuldades, Mas livra-nos do perigo, Única casta e bendita!
A oração,
redigida na primeira pessoa do plural, parece ser, por isto mesmo,
pertinente ao uso da Liturgia. Comentemo-la, levando em conta as
traduções da mesma existentes nas diversas tradições litúrgicas.
Sob a tua
misericórdia nos refugiamos... Uma das diferenças mais notáveis quando
consideramos as versões recentes, está em que o antigo orante se
refugiava debaixo da misericórdia de Maria, ao passo que o texto latino
diz praesidium, proteção, asilo, defesa - o que parece ser mais sóbrio. A
expressão "sob a tua misericórdia" se encontra nas versões bizantina,
copta e ambrosiana, ao passo que a Liturgia síria reza mais
enfaticamente ainda: "sob o manto da tua misericórdia". Por sua vez, o
rito etíope diz: "sob a sombra de tuas asas".
Alguns manuscritos latinos do século X traduzem literalmente: sub tuis visceribus,
isto é, em tuas entranhas nos refugiamos. Esta versão faz ressoar um
semitismo bíblico: a misericórdia é comparada às entranhas de uma mãe,
que em seu íntimo defende e abriga seu filho. Na verdade, o vocábulo
grego eusplanchían significa boas entranhas. Como se vê, o texto
original põe em relevo a confiança filial e a índole afetiva das
relações entre o cristão orante e a Santa Mãe de Deus.
Theotókos. O título que comumente se traduz por "Mãe de Deus", quer dizer, ao pé da letra: "Aquela que deu à luz Deus", em latim Deipara.
Este título professa que a pessoa que Maria deu à luz, é a pessoa do
Filho de Deus ou a segunda Pessoa da SSma. Trindade na medida em que
quis assumir a carne humana. Note-se que o vocábulo Theotóke é
forma de vocativo; donde se depreende que a oração é dirigida a Maria,
como expressão da grande antiguidade da devoção mariana no povo de Deus.
Não deixes de considerar as nossas súplicas em nossas dificuldades. Ao pé da letra, o fiel pede a Maria: "não afastes de nossas súplicas o teu olhar".
Basta, pois, que a Mãe de Deus esteja atenta às nossas súplicas para
que estejamos seguros. Não se trata, porém, de qualquer súplica, mas
daquelas que brotam das dificuldades.
Mas livra-nos do perigo. Observe-se que o texto atual desta prece menciona "os perigos", ao passo que o papiro fala "do perigo".
Quem recua até o ambiente egípcio do século III, verifica que o perigo
por antonomásia eram as perseguições movidas pelo Império Romano contra
os cristãos. O historiador Eusébio de Cesaréia (+339), em sua História
da Igreja, descreve a grande crueldade das perseguições havidas no
Egito. Por conseguinte, pode-se crer que a comunidade que compôs tal
oração, em tempo de perseguição, recorria à proteção da misericórdia da
Mãe de Deus. Se tal suposição é correta, vê-se que a oração refletia
dramaticamente a alma do povo de Deus.
Única casta e bendita! A exclamação final professa a virgindade de Maria Santíssima. O termo agne significa pura, casta, santa; além da virgindade, proclama a fidelidade de Maria à vontade de Deus.
2. O problema da datação
Os estudiosos concordam entre si ao afirmar a grande antiguidade do texto, mas oscilam entre o século III e o século IV.
Os que preferem
o século III valem-se de argumentos papirológicos (material sobre o
qual se fez a escrita, tipo de letra, caligrafia...). Os partidários do
século IV baseiam-se em razões de ordem doutrinária: o uso da expressão Theotókos, dizem,
não se encontra antes do século IV. Todavia a pesquisa atenta das
fontes literárias ou patrísticas leva a concluir claramente em favor do
século III. Eis o que se pode apurar:
Por volta de 428 Nestório, Patriarca de Constantinopla, rejeitou o costume, arraigado no povo cristão, de chamar Maria Theotókos; preferia falar de Christotókos (a
que deu à luz o Cristo). Com isto Nestório queria pretensamente
salvaguardar a humanidade completa de Cristo, mas na verdade estava
separando o divino e o humano em Jesus e negando a verdadeira
Encarnação. A réplica a Nestório não se fez esperar. São Cirilo, Bispo
de Alexandria, sede tradicionalmente oposta a Constantinopla em questões
cristológicas, assumiu a defesa do título Theotókos. O Concilio geral de Éfeso em 431, valendo-se das palavras de Cirilo, declarou que os Santos Padres "não duvidaram chamar Theotókos à
SSma. Virgem" - o que não queria dizer que a Divindade começou a
existir a partir de Maria, mas que Aquele que nasceu de Maria, desde o
seio materno está unido hipostaticamente ao Verbo de Deus.
A controvérsia assim oriunda tem suas raízes em épocas anteriores. Com efeito; quando Nestório se pôs a negar o título Theotókos, encontrou-o
já inveterado no povo de Deus, principalmente no Egito ou na região de
Alexandria. Retrocedendo ao século IV encontramos o grande Bispo
Atanásio de Alexandria, que por volta de 340 atribuiu algumas vezes o
título Theotókos a Maria SSma., tanto nos seus escritos contra os arianos quanto na sua Vida de Antão.
O antecessor de
Atanásio na sede alexandrina, S. Alexandre, também usou tal título:
numa de suas cartas afirma que o Verbo assumiu um corpo verdadeiro, e
não aparente, de Maria, aTheotókos (PG 18, 568c).
Em 300 foi eleito Bispo de Alexandria Pedro I: ao referir-se ao mistério da Encarnação, chama duas vezes Maria Theotókos (PG
18,517b). Nem Pedro nem Alexandre nem Atanásio sentem a necessidade de
justificar ou explicar o título - o que mostra que era tranquilamente
aceito pelo povo de Deus.
Entrando agora no século III, notemos que o mártir alexandrino Piero (+300) cognominado Orígenes Júnior, escreveu um tratado sobre a Theotókos (Peri tes Theotókou), como refere Filipe de Side.
Recuando mais ainda, registra-se uma observação do historiador Sócrates, o Escolástico, na sua História da Igreja: afirma
que Orígenes de Alexandria (+254) no início do seu comentário sobre a
epístola aos Romanos (redigido por volta de 243), elaborou ampla
explicação do sentido que tem o termo Theotókos; em tal caso
pode-se crer que Orígenes sentia a necessidade de explicar o título
mariano. Infelizmente, porém, esse comentário da epístola aos Romanos se
perdeu. O vocábulo Theotókos ocorre ainda em alguns textos de Orígenes cuja
autenticidade é discutida (o fragmento 80 sobre Lucas é tido geralmente
como genuíno). Há certamente algumas afirmações de Orígenes, em suas
homílias sobre São Lucas, que sugerem tenha Orígenes, já na primeira
metade do século III, chamado Maria SSma. Theotókos.
Este título ocorre outrossim na obra As Bênçãos dos Patriarcas, de
Hipólito de Roma (+235), que pode datar de fins do século II (julga-se,
porém, que a referência ao título é devida a uma interpolação e não
pertence à integridade do texto).
Como quer que seja, pode-se reconstituir a série de autores alexandrinos que aplicam a Maria a designação Theotókos: Orígenes, Piero, Pedro I, Alexandre e Atanásio; tal série vai de 243 a 340, evidenciando a antiguidade do texto.
Estes dados de
literatura patrística são assaz significativos para que se possa
atribuir a oração em pauta ao século III. Ela é testemunho de que a
piedade mariana desde remotas épocas existe no povo de Deus, pondo em
relevo a figura maternal de Maria: Mãe de Deus feito homem e Mãe dos
homens que seguem a Cristo perseguido e vencedor da morte.
Fonte: Almas Devotas
Nenhum comentário:
Postar um comentário