Desde a última vez em que
conversamos estive me perguntando permanentemente quê atitude adotar frente aos
comentários que me fez. Conheço teu temperamento e, além disso, tenho nesse
aspecto um senso comum convosco. Meu modo de ser é também crítico e suspeito
que desprender-se das más conseqüências que isto encerra é tarefa de toda uma
vida.
Sei que a atitude crítica é
sã, manifesta um espírito de inconformismo frente aos males e aos erros. Mas,
aprendi também que existe um “demônio da crítica” cuja missão consiste em
atormentar as mentes dos que vigiam a marcha dos assuntos humanos para levá-los
ao desespero de dois modos, segundo me parece: desesperando de tudo e de todos,
e logo desesperando de si mesmos.
A consciência de ter tido o
privilégio da revelação, acesso aos Mistérios de Fé, fidelidade frente à
apostasia geral, perseverança em resistir à pressão social que nos oprime a
seguir à corrente, coragem para perseverar quando outros desertam e testemunhar
frente aos que se negam à toda liberdade de espírito; a consciência destes
méritos –que não são próprios senão misteriosamente doados por Deus- não deve
nos fazer olvidar que somos falíveis.
É fácil reconhecê-lo.
Somente um néscio o negaria. O difícil é crê-lo com uma convicção profunda, e
agir em conseqüência frente aos dizeres e feitos próprios e alhures, sobretudo
nestas matérias nas quais nos consideramos paladinos.
Para poder medir de um modo
mais ou menos realista o alcance de nossa própria falibilidade é o terrível
dano que causamos ao próximo por ação ou omissão na medida em que nos cremos
falíveis – insisto, costume mais que uma convicção racional- deveríamos dirigir
as próprias energias críticas contra nós mesmos, saudavelmente. Não se trata de
castigar-se (algo que fazemos com freqüência) por não haver alcançado êxito. O
tão aspirado “êxito” é um dos conceitos vácuos do homem moderno. Se trata de
criticar nossas falhas com a caridade que nós devemos a nós mesmos, não menos
que ao próximo, e insistir pacientemente em um caminho de perfeição cujo
término deve ser a vontade de Deus.
Aqui fica descoberto nossa
mais crua e penosa falibilidade: muitas vezes nem sequer somos capazes de saber
com certeza qual é a vontade concreta de Deus a respeito de nosso próprio
destino pessoal. Penosa e triste falha que, todavia, sabemos dissimular com
outras apreensões pontificais sobre os destinos da Pátria, do mundo e da
Igreja, dos quais, naturalmente, não temos a menor dúvida.
Eu te diria, parafraseando a
um conhecido escritor: os hipercríticos são aqueles que vivem julgando os outros
por suas ações e reivindicam serem julgados pelas coisas que eles planejam
fazer algum dia.
Creio que um bom antídoto
contra a hipercrítica é a ação. Quando a obstinação dos fatos nos faz sentir
nossa própria impotência, começamos a reconhecer os méritos dos atos dos
outros. Mas, há seus riscos: quando não encaminhamos devidamente a frustração,
ficamos invejosos e ressentidos. Ou terminamos em apatia ou em um ceticismo
mais ou menos latente, com vernizes intelectuais rigorosamente diletantes.
Nunca te ocorreu pensar que
essa incapacidade para a ação fecunda (a que deixa atrás de nosso passo obras
em pé e não ruínas) é uma conseqüência do temor de confrontar nossas ilusões
(nas quais somos heróis, gênios, ou santos) com à realidade (na que seguramente
somos infinitamente mais covardes que os heróis, mais torpes que os gênios e
mais pecadores que os santos)?
Como alcançar nossa própria
medida, conformarmo-nos a nosso próprio destino? Te sugiro algumas idéias que
recolho por ali.
Não buscar o êxito, senão
fazer a vontade de Deus, a que se expressa aqui e agora no cumprimento
meticuloso dos deveres de estado, dos maiores aos mais insignificantes. Ser
fiéis no pequeno.
Ser lento no falar,
sobretudo do próximo e de suas obras e presto a ouvir. Sim, ouvi-lo
cordialmente, com os ouvidos do coração. Colocar-se em seu lugar, tratar de
entender –o que não significa tolerar nem aprovar necessariamente- seu ponto de
vista; e fazer-lhe algum bem com nossas palavras. E sem isto não é possível,
fazer-lhe um bem com nosso silêncio, ainda que mais não seja o de não
obstiná-lo mais em seu erro. Quantas vezes sabemos que a palavra dita por nós
em certos ambientes não fará nenhum bem e todavia a dizemos, porque não podemos
resistir à ocasião de ser engodo ao outro, ainda que o estejamos empurrando ao precipício
da ira e da cegueira. Se não podemos dar testemunho falando, demos calado.
Se trata-se de julgar,
porque não usar um julgo generoso para que a mesma medida não seja logo
aplicada a nós? Porque não salvar a intenção do próximo na medida do possível?
Se é insuperável, guardar silencio, e se não podemos guardar silêncio, porque
falar em nosso dever moral ou intelectual, fazê-lo sem cólera, sem esculpir-lhe
na cara seus erros ou suas deficiências ou os erros e deficiências de suas
obras.
Com quê direito nos sentimos
alguém por nós mesmos, se não seriamos nada sem o auxílio de todos os que nos
deram lições em suas obras ou em seus exemplos? Somos forçosamente herdeiros de
muitos, qual será o legado que deixaremos, por sua vez, a nossos sucessores? O
da coerência dos loucos? Não vamos reconhecer que somos humanos, que podemos
contradizermo-nos e errar e que estes erros não são necessariamente
desqualificadores?
Esta é a forma em que o
hipercrítico se vai transformando no sectário: dados os meus princípios, tenho
absoluta razão em tudo que digo. Assim, sem matizes, sem compreensão, sem
piedade, sem humanidade.
É impossível conservar a
pureza intelectual se não conservarmos a pureza de coração. Se nosso olho se
transformou impuro já não poderá ver nada nitidamente, tudo estará distorcido
por essa lente que agiganta os defeitos de fora e aos de dentro, os torna
imperceptíveis.
Já sabemos que não há outro
fogo purificador que o da Caridade. Não somos os detentores da verdade, senão
apenas aspirantes, no melhor dos casos, a seus conhecimento. Não temos a
verdade, senão que, por graça de Deus, apenas podemos estar na verdade. Não
sejamos iconoclastas das opiniões nem das obras dos outros e seguramente
receberemos a graça da fecundidade nas nossas próprias.
Afastemos de nós todo
espírito de seita. Respiremos o ar fresco da dissidência cordial, afável,
caritativa. São tão poucos (e tão importantes) os temas nos quais devemos
necessariamente estar de acordo que cabem nas fórmulas do Credo. Nas demais não
devemos muito auxílio porque toda apreciação, por ilustrada e prudente que
seja, sempre resultará precária.
Na ordem do saber e da prudência
das decisões; na ordem das conquistas e das realizações também se aplica esta
sentença: quem cria ser mais do que é -isto é, nada- se perderá. Quem cria
sensível e firmemente que nada pode por si mesmo, mas que pode tudo n’Aquele
que nos sustenta, esse fará milagres.
M .A. G.
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